16/11/2023

divergindo

Você é um médico que está de plantão cuidando de um único paciente. Sua equipe é composta apenas por você, mais ninguém. O monitor do paciente frequentemente começa a apitar piiiiiiiiiiiii enquanto mostra uma linha reta no display,indicando que o paciente está indo de arrasta para cima. Sua função é manter o paciente vivo. Você rapidamente aperta o botão de alerta, busca o carrinho de emergência, afasta o lençol que cobre o paciente e abre seu pijama. Aplica o gel no peito do paciente, grita uma voltagem e... Nada acontece. Você se sente burro ao lembrar que não adianta gritar: você está sozinho. Sua equipe é composta apenas por você, mais ninguém. Rolando os olhos, você corre para dar a volta na maca, configura o desfibrilador, pega as pás e aplicar o choque - desta vez, sem gritar nada antes.
 
Funciona. O paciente volta, está tudo bem. Você volta para a cadeira de descanso, mas não consegue descansar. A adrenalina ainda agita seu corpo. Você pensa em dar uma volta pelo hospital, mas tem medo de que o paciente tenha outra parada, teme não ser rápido o suficiente para salvá-lo da próxima vez. Sem muita opção, você se resigna a balançar a perna e esperar.
 
E espera.
 
E espera.
 
x
 
Espera tanto que, em determinado momento, está convencido de que o plantão acabou. Que o paciente está curado. Que tudo está sob controle. Que a situação nunca esteve melhor. Então, você descansa. Sente o corpo relaxar. Ouve o silêncio tomar conta do ambiente. Deixa o silêncio explorar seu inconsciente. E então piiiiiiiiiiiii.
 
O procedimento se repete. A adrenalina volta. Dessa vez, você demora mais para descansar. Levanta da cadeira, mas imediatamente se arrepende e volta a sentar. Troca de posição. Horas de desconforto se passam lentamente. Mas, dessa vez, parece que o coração do paciente vingou. Os batimentos estão fortes, ritmados, estáveis. A situação parece melhor dessa vez e você se permite uma breve distração. Um capítulo de um livro, alguns minutos na timeline de alguma rede social, uma resposta no grupo da família. Até que piiiiiiiiiiiii.
 
Depois de outra experiência de susto, correria e adrenalina, você está desconfiado. Não estava tudo bem? Porque a situação se tornou critica de repente? Você deve ser um médico ruim. Sim, essa é a única explicação. A culpa é sua. Talvez você nunca seja capaz de salvar esse paciente. No próximo encontro dos formandos de medicina de 2015, seus colegas vão contar casos complexos que tiveram finais felizes, enquanto você remói o paciente cujo coração não parava de parar de bater. Vão zombar de você. Vão dizer "como você não foi capaz de salvar esse?". Vão te tratar com condescendência, "cada caso é um caso", "nem tudo o que parece fácil é fácil de verdade".

Não! Você não pode deixar, não pode desistir. Você vai salvar esse paciente custe o que custar! Vai ficar vigilante dessa vez. Não vai se permitir relaxar. Vai lembrar que não adianta gritar, pois está completamente sozinho e sua equipe é composta apenas por você, mais ninguém. Nunca vai baixar a guarda. Ficará em estado constante de alerta.
 
Durante dias.
 
Durante semanas. 
 
Durante meses você mantém a promessa que fez para si mesmo. Em algum momento, uma mosca entra na sala. "Que anti-higiênico", você pensa. Vira o corpo durante um instante para procurar um inseticida. Mais uma vez, é pego de surpresa pelo longo e estridente som piiiiiiiiiiiii.
 
E, por um breve instante, um milésimo de segundo, você se permite cogitar se seria realmente tão ruim se apenas deixasse o paciente morrer.
 
-------------------------------------------

Escrevi esse texto sobre o surto que viver sendo uma pessoa neurodivergente. Alguns dias são piores que outros, outros são piores que todos. Mas, é justamente quando você baixa a guarda, quando pensa que está tudo bem e que o caminho para "a cura" está chegando ao fim, que os sintomas voltam com tudo e você precisa recomeçar. É um processo doloroso e exaustivo. Frequentemente me pergunto se vou viver assim até o fim da vida.

Um comentário

  1. Só as loucas sabem, dizia já o cbjr. Eu gostei muito desse texto, porque realmente me sinto assim as vezes (hoje tá tudo pegando fogo no hospital)

    ResponderExcluir

n'arte morta. Design by Fearne.
copyright© : Todos os direitos reservados